Lourenço da Silva mendonça
John Nost o Velho, Busto de um escravizado, 1701
A Cátedra lembra e homenageia o esquecido Lourenço da Silva Mendonça, príncipe mbundu (kimbundu) do Reino Pungo-Ndongo, hoje Angola, e sua luta abolicionista, transatlântica e interseccional, contra a desumanização e subjugação de africanos, indígenas das Américas, e cristãos-novos no contexto da colonização no século XVII. Mendonça abriu como procurador da confraternidade Nossa Senhora dos Homens Pretos em Lisboa, de Castilha, do Brasil e do mundo do Cristianismo ao Papa Inocêncio XI, Bispo da Cúria Romana (hoje Vaticano) e Pontífice da Igreja Católica, em 1684, um processo contra a escravização. Rememorar este processo leva à reescrita do protagonismo e da resistência africanos na história do colonialismo, do abolicionismo, e oferece, ainda, um novo entendimento sobre a escravidão na África subsaariana. É isso que argumenta José Lingna Nafafé (2022) em seu livro Lourenço da Silva Mendonça and the Black Atlantic Abolitionist Movement in the Seventeenth Century (Cambridge University Press). A exposição de Mendonça no processo jurídico contra a escravatura baseia-se no conhecimento profundo da legislação colonial da época e no pensamento ético enraizado em sua formação na cosmologia bantu. Ela demonstra que não existia escravidão antes da chegada dos europeus na África subsaariana, senão apenas um bem definido sistema de servidão. Esse era incomparável com a chattel slavery, ou seja, uma escravidão que desumanizava as pessoas e as enquadrava legalmente como bens moveis. Em uma situação de conquista territorial, os reis e sobas (chefes) conquistados foram obrigados através da lei de baculamento de pagar tributo em pessoas desde 1611. Houve forte protesto dessas lideranças, entre eles de Nzinga, Rainha primeiro de Pungo-Ndongo e depois de Matamba, tia de Mendonça, e de Garcia II, Rei do Congo, igualmente parente dele. Isso revela que Mendonça não foi o primeiro a fazer resistência ao projeto colonial-capitalista e pan-europeu da modernidade, cujo fundamento econômico foi a escravização e a monocultura nos países colonizados. Mas ele foi o primeiro a articular os diferentes lados do Atlântico (Europa, América e África) para apresentar de forma organizada e sistematizada um processo legal no Tribunal Sacro em Roma e perante “Vossas Eminências” na Cúria Romana. Nele, argumentou de ser ilegal o roubo, por força ou fraude, a venda, a compra, o transporte, e o cativeiro de pessoas consideradas negras ou selvagens (“nigros aliosques sylvestres”). Muitos dos escravizados já estavam batizados, ou antes ou depois do cativeiro, sendo no útlimo caso à força. No Brasil e na Europa, mas também em África se organizaram em Irmandades Pretas nas igrejas católicas.
O processo instituído por Mendonça foi acompanhado pela entrega de um dossier (Memorial de 1686) dessas confraternidades dos Homens Pretos do Brasil (em partes concernentes os jovens, as mulheres, e os homens). As confraternidades existentes na Europa (Portugal e Espanha) e na África (Cabo Verde, São Tomé, Angola, Congo) já haviam enviado seus dossiers em momentos anteriores, para comprovar e detalhar a ilegitimidade, violência e brutalidade do tráfico de escravizados, de seu cativeiro e de sua exploração. A vida de Mendonça o levou a conhecer o projeto colonial do ponto de vista africano, brasileiro e europeu. Nascido e criado em Pungo-Ndongo, foi exilado, na casa dos seus vinte anos, como prisioneiro político de guerra para o Brasil em 1671 após a morte de seu tio Hari II, último Rei de Pungo-Ndongo. O reino foi destruído pelo poder colonial português, com forte participação de militares brasileiros, devido à oposição de Hari II ao tráfico humano de seus súditos. A Rainha Nzinga – meia irmã de Hari I, avô de Lourenço, nomeado Rei em vez dela como resultado de sua aliança à Coroa portuguesa – lutou toda a sua vida contra essa usurpação e a invasão e conquista do reino de seus antepassados. Nessa luta cortava as rotas do tráfico que levava seu povo escravizado, ou recebi escravizados fugidos. Muitos dos súditos de Nzinga foram levados para o Brasil, onde fugiram também e viviam em quilombos, tendo sido Palmares um dos quilombos com maior presença de pessoas sequestradas do território colonizado como Angola. O príncipe Mendonça cresceu como a Rainha Nzinga em um ambiente de guerra, mas, por sua vez, foi provavelmente educado no colégio jesuíta em Luanda como seu avô, tio, e seu pai, sendo este último oficial da Coroa portuguesa. A educação colonial visava formá-los para manter a aliança com Portugal.
Como prisioneiro de guerra no Brasil, onde conheceu o lado efetivo e letal da escravização em Salvador da Bahia e no Rio de Janeiro, Mendonça começou a seguir os passos de sua tia e de seu tio. No entanto, ele levou a resistência a um novo patamar, um patamar legal que questionou a falsa retórica colonial da “guerra justa” e da existência de uma escravidão africana antes da chegada dos europeus, expondo sua criminalidade. Em seu exílio, Mendonça iniciou uma articulação transatlântica contra o sequestro dos africanos, conhecendo também a opressão dos povos originários e dos cristãos-novos. Visto como elemento perigoso no contexto da constante luta contra a escravidão e o colonialismo em África, pelo menos desde Afonso I no Congo, também ele parente de Mendonça, e no Brasil, através de revoltas, fugas e da criação de quilombos, o jovem príncipe Mendonça acabou sendo levado para Portugal, onde estudou no Mosteiro em Vilar de Frades.
O Mosteiro era um local importante de formação para a jovem elite das colônias. Lá estudavam jovens aristocratas africanos e filhos de lideranças indígenas do Brasil. Depois dos estudos tornou-se procurador da Irmandade de Nossa Senhora dos Homens Pretos de Lisboa, representando ainda Castilha, Brasil e o mundo do Cristianismo. Como representante legal levou o caso da escravidão à Cúria Romana. Para tal, Lourenço passou por Toledo para ganhar a autorização do Rei de Espanha (sendo o Rei de Portugal apenas Regente), e chegou com um salvo-conduto do núncio da Cúria em Lisboa, até Roma. Devido à dimensão jurídica do processo, a Propaganda Fide foi obrigada a mandar investigar o caso.
No processo, Mendonça demonstrou que a captura e o cativeiro, a compra ou venda de “negros” e outros “selvagens” – no sentido tanto de viverem na selva como de não terem sidos domesticados pela igreja católica, ou seja, que eram considerados “infiéis” –, era contra as leis divina, civil, natural e humana. Um documento de 1686, “S.C.S. Officii 20 Martii 1686. – Propositiones: De captivitate nigrorum aliorumque sylvestrium” comprova que o Papa deu razão às 11 proposições legais apresentadas por Mendonça. Em outras palavras, Mendonça deve ter ganho em conjunto com as irmandades. No entanto, os interesses econômicos de manter a escravidão falaram mais alto e o caso foi arquivado em segundo instância. Os rastros de Mendonça se perderam, foram apagados e sua história esquecida. Mas sua luta foi continuada pelos quilombolas e outros africanos e afrodescendentes no Brasil e em África, até hoje.
Livro de José Lingna Nafafé, Lourenço da Silva Mendonça and the Black Atlantic Abolitionist Movement in the Seventeenth Century. Publicado em 2022. Para saber mais, acesse aqui