Projeto de Criação do IEAC
A ideia de estudos avançados.
Por Renato Janine Ribeiro
A criação de um Instituto de Estudos Avançados e Convergentes na UNIFESP atende a uma necessidade/convicção, sentida por várias universidades de ponta no Brasil e no mundo, que é a de ter um locus onde se possam discutir pesquisas inovadoras, e também segue um princípio: o de não copiar modelos preexistentes.
O IEAC será o nome assumido pelo Centro de Pesquisas Convergentes previsto no PDI 2016-2020, por tratar-se de denominação mais consagrada, desde o seminal Institute for Advanced Study criado em Princeton (1938) até os vários brasileiros, como o Instituto de Estudos Avançados da USP, da UFMG (Instituto de Estudos Avançados e Transdisciplinares), da UNICAMP (Centro de Estudos Avançados) e o da UFRJ (Colégio Brasileiro de Estudos Avançados), que variam em torno deste nome, mas mantêm sempre em comum a referência aos estudos avançados.
O Centro de Pesquisas Convergentes, ou IEAC, tem sua missão definida no item 2.4.7, às pp. 100-1 do PDI, consistindo ela em promover pesquisas convergentes, consideradas como sendo as mais avançadas no plano do conhecimento, bem como em organizar a tradução das diversas linguagens científicas, de modo a umas se beneficiarem das outras e, finalmente, realizar um trabalho de comunicação que permita à comunidade unifespiana, bem como à sociedade como um todo, beneficiar-se das conquistas do conhecimento avançado e interdisciplinar.
Seu foco é fortemente interdisciplinar. Um histórico é necessário. Ao longo das décadas de 1960 a 1980, extraordinário esforço foi empreendido pelas melhores universidades e pelas agências de fomento a fim de eliminar o ecletismo, que grassou por muito tempo na academia brasileira, e assegurar pesquisas mais sérias e aprofundadas. Se o resultado foi altamente positivo, levando nossa pós-graduação e pesquisa a ser o único nível de ensino em que nos ombreamos com os países mais avançados, por outro lado ficou órfão o diálogo interdisciplinar – ponto que, por exemplo, já apontei em artigo de jornal na década de 1980, no hoje extinto Jornal da Tarde. Desse vazio resultaram iniciativas como a criação, em 1994, de um comitê assessor interdisciplinar no CNPq, na gestão de José Galizia Tundisi, que infelizmente não funcionou como deveria, dada a dificuldade do próprio assunto, e de uma área interdisciplinar na CAPES, que cresceu exponencialmente, a ponto de em poucos anos se tornar aquela que mais programas engloba e mais propostas de criação de novos programas recebe.
O que se pode fazer com a pesquisa interdisciplinar? O projeto do CPC/IEAC desenha três estratégias para lidar com ela, estimulando-a:
1) Uma parte da pesquisa interdisciplinar já se realiza no quadro de programas existentes – em especial, mas não só, programas de pós-graduação avaliados na área interdisciplinar. Esses programas estão bem alocados e o IEAC não deve interferir neles, podendo sim contribuir para sua divulgação e fornecer espaço e estrutura para seu debate com outros programas que tenham interface com eles;
2) Outras pesquisas convergentes e interdisciplinares deverão ser estimuladas no IEAC, que funcionará como incubador das mesmas, em sua fase inicial e experimental. Caso se desenvolvam, sua vocação será a de se emanciparem, vindo a obter personalidade própria e autônoma numa de diversas configurações possíveis (programa de pós-graduação, curso de graduação, cátedra, núcleo etc.);
3) Finalmente, poderá haver pesquisas interdisciplinares que permaneçam no quadro do IEAC, em especial quando o principal para elas for terem um espaço – permanente ou temporário – de diálogo. Assim foi que, durante as reuniões preparatórias realizadas no primeiro semestre de 2018, pôde-se constatar um desejo intenso de diálogos, mesmo informais, sobretudo informais, entre docentes de diferentes áreas e campi. Isso não se pode perder.
Acresce que em 2018 vários programas de ponta, de feitio interdisciplinar, foram contemplados pelo projeto de internacionalização – PRINT – da CAPES, o que significa que eles disporão de estrutura e recursos para conduzirem suas atividades, dispensando o papel do IEA na sua indução.
Por estas razões, o presente projeto de criação do IEAC implica que em nenhum momento ele substituirá ou inibirá iniciativas bem sucedidas em outras inscrições institucionais da UNIFESP – porém, incentivará e estimulará o que se fizer desejável para o avanço do conhecimento e sua utilização tanto na formação de uma cultura científica (o que podemos chamar letramento científico avançado) quanto na utilização benéfica, pela sociedade, dos conhecimentos rigorosos gerados no âmbito universitário.
Em relação aos três desenhos acima expostos, o papel do IEAC será então o de:
1) Promover periodicamente atividades de difusão dos programas PRINT e outros interdisciplinares/avançados da UNIFESP, de modo a divulgá-los à comunidade interna e externa, mostrando como novos paradigmas de pesquisa se delineiam hoje em dia;
2) Selecionar, por convite ou iniciativa dos pesquisadores, iniciativas que possam ser incubadas no IEAC, tendo em vista sua posterior emancipação em inscrições institucionais diversificadas (não é obrigatório que todo grupo de pesquisa forme um programa de pós-graduação, embora seja possível que esse destino se realize em vários casos);
3) Manter diálogos aprofundados entre áreas bem diferentes entre si, mesmo que deles não resultem núcleos emancipados, como forma de assegurar o diálogo entre as diferentes culturas que Charles Snow resumiu em duas na sua célebre conferência de 1959 (As duas culturas, que se ignorariam por completo, seriam a dos cientistas e a das Humanidades), e que hoje certamente são bem mais numerosas. Missão essencial de qualquer IEAC ou CPC é garantir o diálogo e a tradutibilidade entre elas, de modo que, em vez de se ignorarem, se enriqueçam.
Com efeito, se por um lado a ciência e o conhecimento rigoroso em geral hoje conhecem um perfil que torna necessária a ruptura, mais do que o aporte puramente incremental, por outro lado a inovação grande na pesquisa depende, vezes sem conta, de equipamentos e equipes robustos, o que implica investimentos de monta, que não se podem fazer no quadro de um IEAC.
Mas, ao mesmo tempo, hoje é difícil a troca de ideias entre pesquisadores, mesmo destacados, provenientes de áreas distintas, dada justamente a especialização, fenômeno este acentuado pelo volume de recursos necessários que acima mencionamos. A especialização é uma faca de vários gumes porque, se ela melhora o conhecimento de áreas precisas, ela engendra um isolamento pernicioso ao avanço da pesquisa.
Assim, desde o começo da modernidade, e a fundação das ciências propriamente ditas, em ruptura com o trabalho puramente especulativo da ciência medieval no Ocidente, o aporte “de fora” se revela fundamental. Assim, nos séculos XVI e XVII, apela-se à geometria tanto para fundar a física, o que deu certo, quanto a ética (Espinosa) e a ciência política (Hobbes), o que deu menos certo, se considerarmos que esses dois últimos conhecimentos vieram a avançar, posteriormente, com outros fundamentos e não mais o geométrico. Mas, de todo modo, foi somente naquela época que a geometria, então velha de dois mil anos, deixou de ser um conhecimento cujo papel principal era a agrimensura, para se converter em paradigma da demonstração rigorosa que desde então reserva a exclusividade do nome “ciência” e, mais que isso, em método e fundamento para algo que vai além do modo da exposição, entrando decisivamente no modo da descoberta. Em outras palavras, a geometria se mostrou extraordinariamente fecunda na geração da ciência moderna, a única a que chamamos, hoje, ciência.
Um dos maiores riscos da excessiva especialização hoje existente é que toda uma pesquisa, mesmo de alto nível, numa especialidade científica se transcorra sem jamais se tomar conhecimento – melhor dizendo, sem se tomar ciência – de outro trabalho em outra área, que poderia ser decisivo na contribuição para pequenas ou grandes revoluções naquela primeira área. Isso vale desde a grande pesquisa até a escolha da vocação nos cursos de graduação: pode o aluno se hiperespecializar desde a iniciação científica, sem nunca perceber que, “na sala ao lado”, algo está sendo estudado que pode casar-se muito melhor com sua vocação pessoal. Ou seja, a hiperespecialização é um problema tanto para os estudos mais avançados, quanto para o ingresso na universidade.
Daí que tenhamos notado, desde o início das reuniões preparatórias para o IEA, um desejo incontido, por parte dos pesquisadores convidados, de dialogar com seus pares de outras áreas a fim de encaminhar soluções para problemas que transbordam a especificidade de suas pesquisas.
A história da UNIFESP, uma instituição que tem uma larga tradição nas ciências da saúde e a força da juventude nas ciências humanas e sociais, aponta bem para a oportunidade de que os grandes avanços no tratamento das doenças – e mais do que isso, na mudança de um conceito de saúde limitado à eliminação das moléstias, para outro no qual se promove, sem limites, a expansão da expectativa de vida bem como ganhos sensíveis na qualidade de vida – sejam tratados em diálogo entre os que conhecem bem os fenômenos da vida em diálogo e os que estudam seus impactos na cultura humana, isto é, na vida individual e social.
Por isso mesmo, desde o início adotamos, na prospecção dos desejos da comunidade, uma estratégia talvez única no mundo no que diz respeito a IEAs: em vez de partirmos de um modelo pronto, dialogamos. Procuramos o chão da (melhor) pesquisa. Fomos grassroots e entendemos que sempre se tem de partir da pesquisa (de qualidade) realmente existente, para se chegar ao que podem ser estudos avançados.
Interdisciplinaridade.
No mesmo sentido, quando foi fundado o IEA da USP, eram poucos os programas interdisciplinares e, com frequência, grupos promissores ficavam sem lar em seus departamentos ou programas. Este não é o caso, ao que pude ver, na UNIFESP, de modo que não deve o IEA duplicar o que já existe, quer sob forma de programas, quer de colaboração entre eles.
Já, em decorrência do que dissemos sobre grandes equipes e investimentos para se fazer a ciência hoje de ponta, como um IEA não terá tais meios, o que caberá será um trabalho sobretudo de diálogos e de ideias.